Budismo tibetano: uma proposta para a autocura
Escrito por Érica Silveira e Victor Rebelo
Bel Cesar, mãe do Lama Michel, fala sobre alguns conceitos budistas e explica como eles podem nos orientar
Responsável pela direção do Centro de Dharma da Paz Shi De Choe Tsog, em São Paulo (SP), há 18 anos, Bel Cesar é escritora, psicoterapeuta e formada em musicoterapia. Aos 21 anos de idade, logo após o falecimento de seu pai, ela fez sua primeira viagem ao oriente, buscando conhecer a filosofia local.
Bel ficou anos apenas como observadora, até que, em seu aniversário de 30 anos, foi apresentada a um casal de amigos que lhe pediu ajuda para trazer o Lama Gangchen Rimpoche ao Brasil. “Assim que o conheci, senti uma conexão imediata e, três dias depois, ele me disse que eu abriria o primeiro centro de dharma no ocidente. Levei um susto, mas, passado um ano e meio, o local foi inaugurado”, contou.
Além de seu intenso trabalho voltado ao budismo, o filho de Bel Cesar, Lama Michel Rimpoche, vive no Monastério de Sera Me, na Índia, onde se dedica ao estudo da filosofia budista tibetana. Em julho de 1994, ele foi entronado e reconhecido pela sociedade tibetana como a reencarnação de Lobsang Choepel, que foi mestre e assistente de Gangchen Rimpoche nesta sua vida atual, quando vivia no Monastério de Gangchen, no Tibete. Lobsang faleceu quando Rimpoche tinha 13 anos.
Nesta entrevista, Bel Cesar fala da transformação de seu filho em lama, os princípios do budismo tibetano, a visão budista da morte, a ausência do Eu e o estado de iluminação total.
Como foi que seu filho Michel se tornou um lama do Budismo tibetano?
Bel Cesar – Após o reconhecimento de Lama Michel como a reencarnação de um lama tibetano, contamos com a orientação espiritual de Lama Gangchen Rimpoche, que pertence a uma linhagem de lamas curadores e mestres tântricos. Em 1981, ele veio ao ocidente para transmitir seus ensinamentos de autocura tântrica e paz interna. Lama Michel Rimpoche nasceu em julho de 1981, em São Paulo (SP), e conheceu Gangchen Rimpoche aos cinco anos de idade. Desde então, sua conexão com o dharma tornou-se evidente, tanto no contato direto com seu guru-raiz, Gangchen Rimpoche, como com outros importantes lamas tibetanos.
Quais são os princípios dos ensinamentos dentro do Budismo tibetano?
O budismo vem responder a uma necessidade muito grande que nós temos hoje de conhecer a natureza de nossas emoções e como a mente funciona. Quando éramos pequenos, ninguém nos explicava o que sentíamos, fomos começando a nomear as emoções sem perceber e aprendemos a denominar muitas dessas experiências por alguém nos ensinar, como se não tivéssemos familiaridade, autoridade interna para dizer a nós mesmos o que estávamos sentindo. Através da prática de meditação, o budismo nos ajuda a ser donos de nós mesmos, no sentido de podermos observar o que está acontecendo, como um cientista interno. É um método de investigação interna para você se libertar exatamente dos clichês, dos preconceitos e das fórmulas-pensamento padrões negativas que temos.
O Budismo ensina a transformação interior?
Hoje em dia, nós temos mais compreensão de que não adianta buscarmos nossa segurança na realidade externa, pois ela está cada vez mais instável. De alguma maneira, procuramos garantir essa estabilidade e não há nada de errado nisso. É ótimo estar em um lugar no qual você se sinta seguro para ter espaço de se observar, só que o mundo está oferecendo cada vez menos essa possibilidade. Portanto, estamos tendo que aprender a relaxar dentro de nós. O budismo não é uma experiência mental. Tempos atrás, tínhamos uma ciência racional e apenas o que era possível de ser medido e perceptível através da experiência da mente era garantido, excluíamos as emoções e os sentimentos como se não fizessem parte da realidade. Atualmente, esse conceito está mudando, percebe-se hoje que temos de lidar com eles. Por exemplo, se estamos sentindo raiva. Segundo o budismo, a natureza da nossa mente é pura como um sol e todos os padrões mentais negativos são como uma sombra, obscurecendo nossa verdadeira natureza, que é luminosa. No momento de ira, estamos obscurecendo uma paz interna que temos no mesmo instante que sentimos raiva. Se não possuimos essa informação, acabamos pensando que, quando nós temos raiva, somos apenas esse sentimento e assim por diante. Não vamos sentar para meditar e, logo de cara, sentir tranqüilidade e paz. O que aprendemos nessa filosofia é como nos voltarmos para nós mesmos, como nos tratarmos com compaixão, como acolhermos o sofrimento de forma que possamos transformá-lo, de fato, em energia vital, não negarmos nada.
Através desses conhecimentos, sentimo-nos livres do temor de nos projetarmos como uma pessoa limitada?
Os ocidentais possuem a tendência de comprar as coisas prontas, queremos que tudo venha de uma maneira que possua começo, meio e fim, não adianta desejarmos saber como fazer as coisas. Por isso, o budismo é vivencial. Não adianta termos todas as idéias maravilhosas como uma bengala, pois se não aceitarmos entrar em contato mesmo, na verdade, não aceitamos. O budismo é para quem quer realmente crescer espiritualmente.
Qual é o significado dos mestres inspiradores?
Necessitamos do mestre exterior para podermos despertar nosso mestre interior. O exterior não vai ser como um pai que sabe e decide por nós até que cresçamos, mas nos ajuda a cumprir nosso papel de auto-responsabilidade, autocura. Somos responsáveis por nós mesmos, porém, ele nos ajuda a fazer o processo até a iluminação total.
O que é esse estado de iluminação total?
É quando tiramos todas as nuvens e pensamos apenas no sol. A iluminação é um estado desperto, onde não existem mais limites, é uma percepção ilimitada da própria natureza da mente. Para nós, que estamos acostumados a buscar a segurança nos limites, é difícil imaginar o que seja esse estado de atitude sem fronteiras, pois entendemos as circunstâncias por limitadoras, a mente é que as percebe, não que elas sejam tal como parecem ser. Esse estado de iluminação é aquela mente livre dessas projeções mentais negativas. Não que uma pessoa iluminada não tenha problemas no nível das ações, só que a maneira como ela lida com essas situações é livre do sofrimento. Esse estado ocorre quando saímos da polaridade entre o certo e o errado, o bom e o ruim, e passamos a ter uma experiência direta com elas. Temos uma tendência a rotular nossas experiências, a condenar, um derrotismo do qual não nos damos conta.
De acordo com o budismo, como devemos trabalhar essas condições interiores?
No Budismo, a vida humana está marcada por três qualidades fundamentais: o sofrimento, a impermanência e a ausência do Eu. No entanto, a tendência é negar nossa marca de sofrimento humano, pois, no geral, sentimo-nos traídos pelo destino quando temos que lidar com a doença, a morte ou mesmo o processo de envelhecimento. Olhamos para o sofrimento com indignação, como se não fosse justo nem correto sofrer. Temos tanto preconceito que não percebemos o ganho de uma oportunidade de crescimento ao lidar com ele. Quantas vezes evitamos olhar uma verdade, sentirmos uma coisa, só que, depois que passa, ficamos muito melhores, porque entramos em contato. Aprendemos no budismo a sermos corajosos.
O que você quer dizer com isso?
Se não houvesse o sofrimento, não necessitaríamos buscar a sabedoria. Queremos conquistá-la, mas não colocamos a mão na massa. É a consciência do sofrimento que gera a energia de sabedoria e não o sofrimento por si próprio, pois sofrer sem sabedoria é acumular mais confusão. A dor em si não purifica nada, por isso a frase “com o tempo passa” não é verdadeira para quem atravessa uma dor não compreendida. Podemos abraçar o sofrimento como forma de transformá-lo em autoconhecimento. Existe a dor natural da vida humana e, ao entrarmos nesse estado de paz, isso não significa que não estamos convivendo constantemente com as dificuldades. Nós temos problemas porque estamos lidando com a impureza dos elementos o tempo inteiro, o budismo não nos liberta disso. O que temos, é um método que nos ajuda a lidar positivamente com os problemas. Não estamos querendo a paz como uma recompensa de um mal, mas porque essa é a nossa verdadeira natureza. Certa vez, meu filho, Lama Michel, quando ainda era menino, queria tomar um sorvete. Ele subiu em uma cadeira para pegá-lo no congelador e, nesse momento, caiu algum objeto de vidro que cortou o seu pé. Apesar de ter visto, continuou pegando o sorvete, porém, quando já o tinha nas mãos e se deu conta do ferimento, começou a chorar e, em seguida, disse que começou a pensar: “Enquanto estava interessado no sorvete, o corte não doeu, mas agora que o vi, vai doer”. Em outras palavras, isso quer dizer que não é o fato de estarmos vendo o sofrimento que temos de sofrer.
Fale mais a respeito da ausência do Eu.
Um exemplo claro disso é que a Terra está morrendo, de fato estamos sabendo que há uma situação muito complicada e o que criou todo esse processo foi uma visão antropocêntrica, na qual separamos o homem da natureza e o colocamos como centro da realidade. Com isso, deixamos de ver as necessidades da própria natureza para manter inteiro esse sistema. O budismo nos dá essa noção da totalidade, de que somos o mundo. Foi por pensarmos que somos o centro que nos separamos dele, criamos uma divisão do Eu e do objeto, do Eu e do mundo. O que temos de aprender agora é como fazer parte do mundo, da mesma forma que temos de entender que a vontade de ter um Eu para nos sentirmos seguros não vai garantir nossa paz. Fazermos esse trabalho de compreender que não somos o centro é entender o outro, é perceber que estamos interligados. Acho que o budismo vem responder a uma necessidade muito urgente de mudança de conceitos, de perceber a totalidade. Enquanto a gente não sente que nossos problemas são iguais aos dos outros, sentimo-nos distantes, mas quando temos a sensação de que os estamos enfrentando todos juntos, cria-se uma afinidade, que é a compaixão, o desejo de fazer alguma coisa. Podemos sair de nossa dor quando reconhecemos a mesma no outro. Nós devemos começar tendo compaixão por nós mesmos e esse é um outro problema muito grande que sinto. Quando começamos a querer praticar a generosidade, é como se fôssemos virar “o generoso” logo de cara. Primeiro, temos que ser generosos conosco, sabermos abraçar nossas próprias necessidades, a fim de ganharmos prazer e confiança. Muitos confundem compaixão com ausência de auto-estima, entretanto, se esquecermos de nós para nos colocarmos no lugar do outro, criamos problemas para os dois, pois quem vai se responsabilizar pelas emoções não trabalhadas que ainda temos?
Através da meditação, os budistas buscam entrar em contato com seus sentimentos?
Existem vários tipos de meditação, uma delas é a de purificação. Há também as meditações tântricas, nas quais tratamos o resultado futuro como causa presente. Isso quer dizer que queremos reconhecer nossa natureza, então a consideramos e nos identificamos com ela. É como se eu quisesse ficar calma, então já estou. É reconhecer essa causa. A partir de gestos, com a visualização das divindades, de cores e sons, e da concentração, trabalhamos a purificação dos chacras, já imaginando que somos a própria divindade. Esse momento não é o ego, mas a alegria de reconhecer essa natureza.