Kardec e a codificação
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Allan Kardec, “cercado por uma multidão de espíritos”, escreve o portentoso O Evangelho Segundo o Espiritismo em Saint-Adresse. Neste local bucólico, “num aposento muito iluminado – descreve a senhorita V..., notável médium de segunda vista – no pavimento térreo. Há ali três janelas...oh!... e como tudo é alegre! A casa é circundada por jardins... por toda a parte há árvores e flores... Tudo respira calma e traquilidade...”

Kardec, aproveitando toda a tranquilidade do ambiente de Saint-Adresse, percebe o plano da obra, plano que, diz um dos guias do codificador, através do médium Sr. D’A, “segundo meus conselhos ocultos, modificaste tão ampla e completamente. Compreendes agora por que precisávamos ter-te sob as mãos, livre de toda preocupação outra, que não a da doutrina? Uma obra como a que elaboramos de comum acordo necessita de recolhimento e de insulamento sagrado.

Tenho vivo interesse pelo seu trabalho, que é um passo considerável para a frente e abre, afinal, ao Espiritismo, a estrada larga das aplicações proveitosas, a bem da sociedade. Com esta obra, o edifício começa a libertar-se dos andaimes e já se lhe pode ver a cúpula a desenhar-se no horizonte...”

E acrescenta “... que a tua obra se complete. Conta conosco e conta, sobretudo, com a grande alma do Mestre de todos nós, que te protege de modo muito particular”.

Assim, O Evangelho Segundo o Espiritismo foi elaborado de “comum acordo” com a espiritualidade maior.

 

Adaptando mensagens

Hoje, pesquisando os primórdios do Espiritismo, sabemos que Allan Kardec, inspirado por “conselhos ocultos”, modificava também as diversas comunicações mediúnicas que chegavam às suas mãos. Essas modificações visavam a didática e o ajuste aos temas comentados nos diversos capítulos, sobre as práticas morais. Muitas vezes, o codificador corta frases, tira ou acrescenta ponto e parágrafo, inclui ou exclui uma, duas ou três palavras; chega mesmo a dividir uma mensagem em duas, dando título novo para parte da comunicação, em coerência com os títulos dos capítulos, nos quais as mensagens são incluídas.

Para visualizarmos o que foi dito acima, vejamos o caso das mensagens A lei do Amor (cap. XI, “Amar ao próximo como a si mesmo”) e Ódio (cap. XII, “Amai os vossos inimigos”).

Em consulta feita à biblioteca Nacional da França, chegamos até a brochura Spiritisme – Réflexions suer lê Spiritisme – Réflexions sur lê Spiritisme, Lês Spirites et Leurs Contradicteurs, por J. Chapelot, um dos líderes do movimento espírita de Bordeaux, escrito em 1863. Na segunda parte desta interessante obra, o autor destaca uma série de comunicações de diversos médiuns de sua cidade. Entre eles, temos a Sra. Cazemajour, uma das pioneiras do Espiritismo bordelense. J. Chapelot inclui novas mensagens captadas por esta notável médium, e entre elas, temos a “Loi D’amour”, a mais extensa e que se sobressai como um diamante lapidado e de brilho incontestante. Esta mensagem, segundo Kardec, é de autoria de Fénelon e foi recebida em Bordeaux em 1861.

A médium Cazemajour era sogra do Sr. Émile E. Sabò, fundador da Sociedade Espírita de Bordeaux, em 14 de outubro de 1861 e do jornal La Ruche Spirite Bordelaise, fundado em junho de 1863; porém, o seu grupo familiar já se reunia desde janeiro de 1861. Segundo mensagem de Erasto, recebida em Paris, pelo médium Sr. D’ Ambel e lida por Kardec na inauguração da Sociedade de Bordeaux, era Fénelon quem presidia a reunião da família patriarcal do Sr. Sabò, e , continua Erasto, a Sra. Cazamajour possuía “qualidades mediúnicas no mais alto grau”.

Voltemos à mensagem Lei e Amor, do livro de J. Chapelot. Allan Kardec, inspirado pelos “conselhos ocultos” dos guias que o coadjuvavam na construção de O Evangelho... destaca essa mensagem em editoração toda especial. Além de rever a forma, mudando a pontuação, incluindo e excluindo palavras e frases, ele divide a mensagem em duas, destacando do texto original, apresentando em três partes, alguns parágrafos da segunda parte e dando, para este corte, o título de O Ódio.

É evidente que Kardec tinha autoridade e permissão para uma editoração desta escala, e sua fé é “das que transportam montanhas e fazem caminhar por sobre as águas”.


Artigo publicado na Revista Cristã de Espiritismo
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